domingo, 27 de outubro de 2013

A VIGÉSIMA QUARTA VÍTIMA - Gilberto Cardoso dos Santos


Estive na residência da vigésima quarta vítima de assassinato em Santa Cruz, ocorrido em 26.10.2013. Por coincidência, sua humilde residência é de número 24. Na sala estreitíssima, amigos, familiares e vizinhos respeitosamente se aglomeravam para vê-lo.

É sempre estranho para mim entrar na casa de quem não conheço em um momento como este. Mas enfrentei meus medos e fui visitá-lo. Contemplei-o demoradamente. Trata-se de um jovem bem afeiçoado que parece estar apenas dormindo, conforme observa uma das vizinhas.

A um canto, um senhor baixo, negro, fuma como a querer dispersar sua dor junto com a fumaça. É o seu pai, um humilde pedreiro de aspecto dócil, homem sem estudos. Busco entabular conversa com ele e logo descubro fatos interessantes a respeito da vítima. O pai esforça-se, como é compreensível em tais ocasiões, para resgatar o que havia de melhor no filho. Explica-me que ele havia largado os estudos, na Escola João Ferreira, que fica próxima, para ajudá-lo como servente.

Ressalta um detalhe que lhe é muito caro nesse momento: a mulher, para quem estava trabalhando ultimamente, gostava muito de seu filho, tirava  brincadeiras com ele e dizia que gostava muito dele. Sim, as pessoas , até mesmo o povo rico ou mais ou menos, para quem trabalhavam, gostava de seu filho. E continuou a falar-me das boas qualidade daquele a quem embalou, alimentou, brincou, com quem conviveu por dezessete anos, carne de sua carne.

O pai não esconde que o filho fumava o que ele chamou de “um pretão”, mas garantiu-me que ele não devia a ninguém por seu vício e que não cheirava pedra nem cocaína, só o pretão. Como trabalhava de servente, semanalmente reservava uma parte para gastar com a droga. Mas, insistiu, nada devia a ninguém nem tinha inimigos.

Penso: um dos sonhos do pai era vê-lo evoluir de servente a pedreiro. Ele, um senhor de idade, em breve poderia ser substituído pelo filho na função.

Nesse instante chegaram alguns amigos dele, ex-alunos meus. Um deles, profundamente entristecido, falou-me do quão eram amigos e do quanto a vítima era legal. “Gilberto, ele era muito brincalhão, mas não tirava brincadeira sem graça. Ele vivia trabalhando, ajudando o pai. Ele ia muito lá em casa e não mexia em nada. Você podia deixar qualquer objeto perto dele que ele não roubava. Pra mim é como se fosse um irmão.”

Perguntei se ele tinha algum processo, passagem pela polícia, e o amigo garantiu que não. A probabilidade, disse-me ele, é a de que o alvo dos tiros não fosse ele, mas o outro com quem andava, que conseguiu escapulir-se. Esse outro, sim, já tinha tido problemas com alguns e era perseguido. Essa era a única explicação plausível que o amigo do morto conseguia ver.

A morte de Wiliam, disseram-me, foi uma surpresa para muita gente. O pai garantiu-me que ele não tinha sofrido ameaças antes.

Como a sala é apertada e não dispõe de assentos suficientes, cadeiras emprestadas por vizinhos solidários foram colocadas na calçada em frente. Nelas, amigos, curiosos e familiares parecem reconhecer a importância do silêncio nesses momentos e trocam breves frases enquanto tentam consolar a mãe do falecido que se encontra ao centro.

O que se nota, nos olhos aflitos de todos que ali estão é um evidente sentimento de medo que se mistura à revolta e ao sentimento de impotência. Enquanto conversava com o pai, tentava ler em seus olhos a dor que não se expressava em lágrimas, mas se fazia evidente em cada gesto e coisa que dizia.

Trata-se de alguém que teme pelos outros filhos, de um pedreiro que tem passado toda a vida tentando construir um futuro melhor para si e para os que ama mas não tem tido condições favoráveis. Tudo parece ruir diante de seus olhos e agora o que tinha de mais precioso acaba de desmoronar.
Que lhe reserva o futuro diante de um presente tão negro?

Os jovens amigos do falecido com quem conversei em particular, falaram-me do medo que tinham de sair à noite e de circular fora do bairro. Sentiam-se discriminados, desassistidos e perseguidos.

Todos temem abrir demais a boca. O silêncio resignado e o choro contido dão uma falsa aparência de calma à ruazinha estreita. Mas somente quem passou por situação semelhante e quem ali reside é que pode ter ideia do desespero vivido por aquela gente humilde.

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