sábado, 27 de janeiro de 2018

MÃE ANINHA DO CÉU (Gilberto Cardoso dos Santos)


MÃE ANINHA DO CÉU (Gilberto Cardoso dos Santos)

Não era minha mãe, mas aprendi a chamá-la de mãe Ana. Quando minha verdadeira mãe morreu, eu tinha menos de quatro anos. Nada entendi daquele momento. Enquanto a velavam na casinha onde – ainda não sabia eu – passaria a morar, eu brincava e ria embaixo da mesa. Alguém me repreendeu pelo comportamento irreverente, e muito chorei por isso. Dali saiu mamãe para o cemitério, e ali fiquei sob a tutela desta segunda mãe, eu, dois irmãos e uma irmã.

Minha mãe legítima também havia sido criada por ela. Ela própria nunca teve filhos. Acreditamos que fosse estéril. A ela se referiam como Dona Ana, ou Ana do finado Mané João, a quem não tive oportunidade de conhecer.

Cedo vieram as peripécias próprias de cada idade. No telhado suportado por caibros e  varas tortas, via-se um pedaço de mangueira, pouco mais de meio metro. Não estava ali para cumprir a real função para a qual havia sido feita – a de conduzir água – todavia tirava água dos meus olhos, e como tirava!

A cada ato infracional, a cada pecado, eu era instado a olhar para o alto. Mirava, para além das telhas, para o olhar severo de Deus; mas o que eu via mesmo era a mangueira que parecia hibernar á semelhança de cobras, à espera do momento de ser empunhada pela vigorosa mão de minha avó e picar-me aparentemente sem piedade. Raras vezes ela dali a retirava. Com severidade similar à dos profetas velho-testamentários, a apontava e fazia promessas nada agradáveis. Apenas isso, o mostrá-la, tinha enorme efeito sobre meus instintos rebeldes. 

Às vezes, porém – raríssimas vezes -, eu não era dono mim e cometia falhas imperdoáveis. Mesmo a casa sendo baixa, dona Ana precisava ficar na ponta dos pés, como bailarina, e estendia o braço para retirá-la. Eram instantes enlouquecedores. Se eu tentasse correr, vinha a ameaça de que a surra seria maior. Sem sair do lugar e seguro pelo braço, aguentava a primeira lamborada nas pernas. A dor era lancinante. Eu não resistia e começava a gritar pedindo misericórdia, por mais que ela ordenasse que calasse a boca. Desde a primeira vez que apanhei passei a fazer uso de um vocativo, que espontaneamente brotava do fundo de meu desespero: Mãe Aninha do céu.

Enquanto pulava igual pipoca no caco, gritava mais ou menos assim: “Ai! Ai! Dê mais não, mãe Aninha do céu!

A cada surra, os vizinhos ouviam a expressão inusitada e isto se transformou num bordão e apelido. Riam de mim enquanto repetiam “Ai, mãe Aninha do céu!” 

Mãe Aninha do céu era algo que eu dizia apenas quando era castigado. Fora isso, chamava-a apenas de mãe Ana.


Hoje, mais do que nunca, vejo quanto foi do céu aquela que tomou conta de mim e de meus irmãos quando mais precisávamos. Se hoje pudesse vê-la, não necessitaria estar com a mangueira à mão para me ouvir chamá-la assim.  






Sua posse na academia de cordel do estado não é para menos. Estou aqui emocionada com sua crônica de família. Mãe Aninha do céu, nem sabia ela que faria desse menino, um homem de coração tão grande. Esse texto me emocionou tanto quanto aquele que você escreveu para a professora Valdenides Cabral Dias. Não consegui conter conter a sequência de lágrimas. - Débora Raquiel Lopes


Belíssimo conto, querido.  Parabéns, apesar da perda. Mas nessas horas , a escrita tem poder curador. - 
Valdenides Cabral Dias

Linda história. Por isso vc é quem é E tem tamanha sensibilidade - 
Juciana Soares

Grande professor Gilberto Cardoso Dos Santos, texto muito triste, porém não deixa de ser emocionante e belo. - Luciana Souza

Selma Crisanto: Emocionante amigo!