Foto: Marcos Cavalcanti, Gilberto Cardoso
Caro Marcos:
Vaselinarei cada explicação ao “Com Que Deus Não se Brinca?” na esperança de que estas penetrem com mais suavidade em seu entendimento. Polêmico é o tema do qual tratamos, sujeito a inúmeras interpretações. Sobre o pão duro da matéria buscarei ser como maionese, visando garantir nossa permanência na mesa dos que degustam nossas palavras - dignos de todo o respeito - e trazer melhor sabor a esta saudável porém insípida discussão. Buscarei proceder com aquela mesma atitude respeitosa por você manifestada no sepultamento de Monsenhor Raimundo ao discursar positivamente sobre o ilustre finado umedecendo com lágrimas sinceras o papel em que escrevera seu discurso. Sabedores de suas (des)crenças, todos nos comovemos com a demonstração de respeito e tolerância manifestados na ocasião e passamos a admirá-lo mais ainda. Monsenhor Raimundo, a quem você se dirigiu depois de morto com palavras untadas de poesia como se este pudesse ouvi-lo (dando margem a quem não o conhecesse de pensar tratar-se de uma oração), manifestou, em igual medida, tolerância para com os ateus quando admitiu a possibilidade de que alguém viesse a salvar-se mesmo sendo descrente; para ele importava mais a conduta que a profissão de fé.
Em Com Deus não se brinca quis me referir à concepção cristã do ser supremo. Quando falamos em Deus, inevitavelmente nos referimos ao Deus que pertence à cultura da qual tratamos ou na qual vivemos. Se porventura eu escrevesse em Cabul para um blog afegão sobre palavras ditas por um sheik pouco antes de um naufrágio ocorrido no mar arábico envolvendo pessoas provenientes da Indonésia, meus leitores muçulmanos, ao lerem a palavra “deus” entenderiam estar me referindo a Alá. O Titanic, na noite de seu naufrágio, conduzia uma tripulação dominantemente cristã. Inclusive, teriam cantado o hino "Nearer, my God, to Thee" (hino cristão protestante), por ocasião do desastre.
O deus a quem faço referência é o Deus da Bíblia. No Novo Testamento, Deus é sinônimo de tudo que é bom. Lemos:
”Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor.” (1 João 4:8).
Muitos estranham a metamorfose que captam na imagem de Deus a partir de Jesus. Alguém disse: “No Velho Testamento temos um Deus que mata; no Novo Testamento vemos um Deus que morre.”
Apesar dos morticínios, mesmo no VT Deus é apresentado como tendo as características de um ser justo, amoroso, imparcial e profundamente preocupado com a felicidade humana. Um profeta escreveu:
“Há muito que o SENHOR me apareceu, dizendo: Porquanto com amor eterno te amei, por isso com benignidade te atraí.”(Jeremias 31:3)
Creio que esta imagem seja crucial para um deus ou para qualquer ser que governe. Até líderes e ditadores famosos que eu e você abominamos sentem a necessidade de manter um conceito próprio contrastante com seus atos. O bom-senso nos diz que um deus perfeito, desejável ou líder ideal, deva ter tais características. Os escritores da Bíblia, mesmo relatando coisas chocantes ao nosso entendimento como matança de crianças (Números 31:17), insistiam na imagem de um Ser bondoso, justo e misericordioso.
O problema é que as ideias de justiça, misericórdia e amor, na prática, são fortemente influenciadas pela formação, características psicológicas de cada um e pela cultura em que se está inserido. Manter escravos, matar e praticar o olho por olho eram perfeitamente compatíveis com a crença em Deus no tempo de Davi. Hoje, isso receberia a condenação de qualquer cristão.
Quando comunistas ateus e inquisidores medievais praticaram suas atrocidades, sentiam-se em perfeita consonância com os ideais de justiça, imparcialidade e amor à espécie humana apregoados pelas ideologias que abraçaram.
Um grande pregador cristão, Dwight Moody, aconselhava que seus fieis lessem a Bíblia como quem come peixe, com todo cuidado para não se engasgar. Eu acho que o pregador estava certo em sua observação: quem quiser manter a fé tem que proceder assim. Tal como Pedro não deveria atentar para os vendavais da incredulidade (Mat 14:30) sob pena de afogamento espiritual, os que se debruçarem sobre a Bíblia com olhar de urubu jamais “subirão como as águias” (Isaías 40:31) É desse modo que o mundo cristão tem procedido. Buscam aquelas partes que salientam aspectos positivos sobre o ser supremo, os versículos que estimulam a fé e a devoção.
A ideia de um deus com quem não se deve brincar vem de versículos como os de 2 REIS 2:23-24:
“Deus é amor, mas também é fogo consumidor”, dizem religiosos, cientes dos muitos relatos em que expressões de blasfêmia resultaram em tragédias. O que tentei foi, a partir dos próprios argumentos fornecidos pela Bíblia e pelos que usam a ilustração do Titanic, chamar a atenção para possibilidade de se pensar diferente.
Finalizo dizendo: perdoem-me os zelosos da fé que se viram censurados em seus comentários ofensivos à pessoa de Marcos. Apesar das diferenças radicais, ele e Monsenhor Raimundo foram bons amigos até o fim. Não tentem tomar as dores de Deus. Se ele é o ofendido, deixem que Ele mesmo resolva à sua maneira, extraindo água da rocha ou enviando raios.
Meditem nestas belíssimas palavras de Padre Zezinho:
“Eu sei que da verdade não sou dono
Eu sei que não sei tudo sobre Deus
Às vezes quem duvida e faz perguntas
É muito mais honesto do que eu.”
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