sexta-feira, 8 de maio de 2015

UM MÊS DAS MÃES TENEBROSO (A MORTE DE MARLIETE) - Gilberto Cardoso dos Santos


Estamos em maio, mês das flores, o mais festivo no calendário local.  Noite do dia 5.  Marliete, mãe, e Jadson, filho, saem da humilde e apertada casa em que residem, sem pretender ir muito longe. A rua em que moram é muito calma. A mãe leva um celular à mão, recém-adquirido. Dias antes, expressara a uma cliente sua felicidade em ter conseguido um aparelho mais avançado, que lhe permitiria entrar no Whatsapp. Apesar de ter um smartphone de boa qualidade, ainda não dispõe de sinal próprio; distancia-se  uns 3 metros de sua casa em busca do wi-fi cedido pelo vizinho. Fica em frente a um prédio em construção que se agiganta encostado à sua residência. Ali o sinal é bom.

A rua, apesar de ser no centro, é mal iluminada. Todavia, na esquina em frente, na via ao lado, há um bar a céu aberto, onde se vê um telão e pessoas bebendo, o que dá certa segurança e traz um pouco de vida aos arredores. No início da noite, ciosa da saúde e da boa forma, Marliete subiu e desceu em caminhada por aquela mesma rua. Agora ali está, tentando conectar-se e pastorando seu ser mais precioso.

O menino, feliz por estar ao ar livre, fora dos limites estreitos da casa, brinca mais ou menos à vontade. Digo mais ou menos porque no mundo de hoje é impossível se viver inteiramente à vontade.  A mãe, um olho no celular outro no filho, vez ou outra o aconselha a não se distanciar muito, a ter cuidado com os carros. Feito uma mãe passarinho vigilante, vê o filhote, tão lindo, ensaiando seus primeiros voos, divertindo-se, na medida do possível. A escola onde ele estuda fica à vista. Diariamente ela se faz presente naquela instituição e sente-se radiante, pois ouve dos professores elogios à inteligência e comportamento do filho.

Marliete é muito simpática e cheia de vida. Não tem tudo que necessita, mas o pouco que julga ter é suficiente para manter seu belo sorriso. As clientes a adoram porque, apesar de pouco instruída, mostra-se muito lúcida no que diz, tem bom astral e as entretém enquanto as embeleza.

Em meio às centenas de pensamentos que vêm e vão, mãe e filho refletem sobre o segundo domingo de maio, tão próximo. O filho planeja surpreendê-la. Vai falar com o pai, moto taxista, para que lhe dê algum dinheiro. Terá que comprar algo bem especial para a mãe.

Entretida com encantos da net, ela pergunta-se, cheia de expectativas, sobre a surpresa que esposo e filho porventura lhe estariam preparando. Seus pensamentos são embalados pela música que vem do barzinho. Marliete Manicure, como é conhecida, tem boas razões para estar feliz. Aproxima-se o seu dia e na salinha de sua casa verde, cor da esperança, onde se vê um diploma de manicure em curso feito no SENAI, há centenas de frascos de esmalte à espera de mãos que em breve ali serão estendidas em busca de renovação. Muitas madames, ansiosas por colorir a vida, recorrerão às habilidades dessa mãe-modelo, se encurvarão para entrar naquela humilde sala e estenderão suas mãos finas e preguiçosas, à espera de migalhas de beleza. É o mês das mães, da festa da padroeira, período de bons lucros!

De repente, porém, a rotina noturna é quebrada e o fluxo de pensamentos se desfaz. Dois jovens se aproximam numa moto, exigem dela que lhes dê o celular; ela se recusa a entregá-lo e é alvejada com 3 tiros. Dizem que ela pensou tratar-se duma brincadeira e que teria reconhecido um dos assaltantes; tentou voltar para casa, quando atiraram. O filho, diante da maior dor e surpresa de sua vida, vê a mãe tombar na calçada do prédio e fios de sangue brotando do ser que mais amava. Vê os assassinos na moto em disparada sem levar o celular. Falharam todas as tentativas, a começar pelos toques do filho, para reanimar aquela que fora tão cheia de ânimo.

Atônito, indagou-se o órfão enquanto chorava:

- E agora, como é que eu vou comemorar o dia das mães? Quem é que vai me acordar cedo pra eu ir pra escola? Quem é que vai cuidar de mim?!

Cessou a música no barzinho, começou o murmúrio na vizinhança, não mais hipnotizada pela TV. Alguns, observando pelas frestas de suas janelas gradeadas, se assustaram ao pensar que nem mesmo em suas calçadas poderiam mais se sentir seguros. O jeito será cada vez mais “entrar” no mundo das fantasias que a TV e a net lhes proporcionam, enfurnar-se dentro de casa.

Naquela noite, muitos não dormiram de tão assustados. Pela manhã, pessoas se aglomeraram à porta da falecida, envoltos por um misto de indignação, perplexidade e sentimento de impotência. Respeitosamente jogaram água na parte da calçada manchada pelo sangue e jogaram areia em cima.

Ali estávamos e nos perguntávamos como seria o segundo domingo de maio para aquela família. As palavras de Jadson ainda ecoavam. Pela manhã ele acendeu três velinhas onde ela caiu.

O dia das mães, instituído em 1932 como reivindicação do movimento feminista, foi uma importante conquista para as mulheres que veio somar-se ao direito de votar a elas concedido em fevereiro do mesmo ano. Estabelecido com objetivos tão nobres, tornou-se traumático para muitos, como Jadson, que não mais têm suas mães. A cada segundo domingo de maio ele, a avó e o pai sofrerão com a perda do grande tesouro.

Todos temos, também, motivo para ter ressalvas quanto a este dia. Temos que pensar duas vezes, por exemplo, antes de presentear nossas genitoras com um bom celular. Além disso, devido medidas judiciais como o Saidão do dia das mães, infratores semelhantes ou piores aos que mataram Marliete, serão postos na rua neste período aumentando ainda mais a sensação de insegurança.

O voto democrático, inadequadamente utilizado, não tem sido eficaz na resolução de nossas mazelas. Decisões tomadas pelos que elegemos mostram-se controversas em momentos como estes. Instantes assim trazem à tona questões como redução da maioridade penal, liberação das drogas, pena de morte, indultos, saidões, justiça com as próprias mãos... e tudo soa muito confuso por estarmos revoltados e sedentos de justiça.

Sabemos que, na atual conjuntura, pouca diferença faz a apreensão dos assassinos de Marliete. A prisão ou isolamento em casas ditas de recuperação, para quase todos eles, tem significado uma oportunidade de aperfeiçoar-se na prática do mal.

No poema “Segredo” de Drummond, lemos:

“[...}
Fique torto no seu canto.
[...]
Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.”

Lamentavelmente, devido a ineficiência de instituições criadas para proteger-nos, precisamos adaptar-nos às limitações que nos são impostas, aceitar  as estreitezas do lar, transformá-lo, quando possível, numa verdadeira fortaleza, ficarmos tortos e psicologicamente torturados em nossos (desen)cantos. É preciso entocar-nos nos espaços virtuais, mas não ir muito “longe” em busca de um sinal, pois é perigoso cruzar o batente.


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