quarta-feira, 28 de agosto de 2019

CARTA A UM CRÍTICO DE MEUS VERSOS



CARTA A UM CRÍTICO DE MEUS VERSOS (Gilberto Cardoso dos Santos)

Meu poema FUMAÇA ACIMA DE TUDO teve grande repercussão nas redes sociais. A poetisa e cordelista Cláudia Borges, por exemplo, não só fez comentários positivíssimos como me falou de muitos outros que o haviam lido e elogiado.
Eis o poema:



 Nando Poeta o divulgou e recebeu de um de seus contatos o seguinte comentário:

“Quando a resposta do artista diz que Deus tocou fogo em Sodoma, está reforçando a tese do adversário, de que Deus é vingativo e está acima de tudo. Deus não está acima e nem abaixo de tudo, Deus é a causa primária do universo e a inteligência suprema. Seria muita burrice, tocar fogo numa cidade em razão dos "pecados" ou vícios de parte de seus habitantes. Isto é totalmente contraditório com a inteligência e justiça divinas.
O artista fala do ópio se referindo a religião como ópio do povo, a religião fundamentalista é realmente ópio, mas, Deus não tem nada a ver com religião. Religião é criação humana.
O artista tão ignorante quanto Bolsonaro sobre Deus, fala que Deus a tudo escuta, mudo. Deus não intervém nas ações humanas, se fizesse isso, seria contraditório com o nosso livre arbítrio dado por ele. E Deus não revoga suas leis, pois, se fizesse isso não seria perfeito.
Quando o artista fala na sarça ardente e na mão do onipotente, ele se refere a Moisés no Monte Horeb. Segundo a Bíblia Deus apareceu a Moisés e mandou ele libertar o povo hebreu escravizado no Egito. Neste episódio apareceu um fogo que não consumia a sarça(arbusto). O artista diz para não ver na sarça ardente a mão do onipotente, aí ele acerta na comparação com o fogo que consome a Amazônia, que é ação humana e não Divina. Já no final, o artista compara Bolsonaro a um cão miúdo. Aí mais uma vez ele reforça a visão fundamentalista religiosa que criou um cão ou diabo com poder igual a Deus. O cão ou demônio simplesmente não existe, seria contraditório  com o poder absoluto de Deus. A existência de um ser rival tão poderoso quanto Deus é invenção do homem. Esta visão do artista reforça a concepção fundamentalista de que o mal é feito por um cão poderoso, comparando a Bolsonaro. O artista tira do homem a capacidade de fazer o bem ou o mal e joga para o sobrenatural, reforçando o misticismo.
Eu não conheço o artista Gilberto Cardoso. Mas, sei que sua arte é livre e independente de minhas concepções e análises. Entretanto, Se vc achar interessante e produtivo, repasse meu comentário sobre a obra para ele.
E se ele quiser conhecer que é Deus e como funciona sua justiça e poder absolutos, recomendo ler o livro dos espíritos de Alam Kardec.
Eu teria feito diferente. A resposta materialista reforça a pregação dogmática, fundamentalista e a fé cega.
A única resposta consequente para a utilização indevida do nome de Deus por políticos oportunistas e por falsos profetas é usar o ensino lógico de Jesus em contraposição aos absurdos que eles pregam.

Escrevi uma carta e enviei-a não apenas para quem fez a crítica, mas também para Nando, intermediador de nossa conversa. Nando disse-me:

Perfeito. Ficou muito boa, com embasamento. Seria legal publicar todo esse debate. Isso seria um ensinamento para o mundo dos poetas, aprenderão que as críticas são bem vindas e a contestação tem que ter argumentação com embasamento. Parabéns!


Eis a carta:

Caro Belchior,  recebi com apreço sua crítica. 

Vi sua análise como construtiva, pois me faz repensar o fazer poético. Encanta-me perceber as diferentes percepções em torno de qualquer assunto, algo tão inerente à espécie humana. A Bíblia, por exemplo, o livro O Capital de Marx e até mesmo a Constituição dão margem a diferentes entendimentos. Parece- me não haver exceção à regra, exceto na leitura de manuais puramente técnicos.

Não me surpreende, portanto, nem vejo como negativo o que disse. Foi bom, depois de vários elogios ao texto, ouvir uma observação divergente. Quem me garante que os que aprovaram o texto tiveram dele o mesmo entendimento que eu? 

A poesia pode se dar a esse luxo de ser ambígua, de permitir e espelhar diversos olhares. 

A primeira coisa a se fazer na leitura de um poema é separar o eu- poético do autor. Às vezes temos um choque entre o que diz ou deixa de dizer um poeta quando comparamos o escrito à vida daquele que o produz. Isso às vezes ocorre de propósito, como bem o fazia Fernando Pessoa ao criar heterônimos, tão diversos entre si e de quem os concebeu.

Outra coisa: nem sempre o que ouvimos é o que o autor disse. Alguém disse: "Eu só sou responsável pelo que eu falo, não pelo que você entende." Infelizmente, é assim que deve ser, pois sempre estaremos vulneráveis às mas interpretações.

O eu poético pode estar em consonância com o que pensa o autor, bem como pode, num exercício de alteridade, tentar exprimir pontos de vista contrários aos do autor ou dele mesmo.

Ao mencionar o Deus que queimou Sodoma apenas busco exprimir o senso comum dos que votam por motivação religiosa, embasados em escritos milenares, cuja visão se faz determinante na aceitação de tudo o mais.

O autor deste poema não crê que uma divindade matou homossexuais no passado e sim que seres homofóbicos em diversos momentos o fizeram em nome de algum deus. Esse mesmo espírito move eleitores de hoje no Brasil e no mundo. O deus que mandou derrubar árvores,  queimar cidades e pessoas está mais vivo que nunca na mente da humanidade. O Deus que, segundo Nietzsche, está morto, para estes parece muito vivo.

Este poema se inspirou na charge que a ilustra, do premiado chargista Rodrigo Brum. As imagens que utilizei direta ou indiretamente têm a ver com "fumaça". Ao citar ópio, naturalmente pensei na famosa frase de Karl Marx, mas não me limitei a isso. A produção de ópio também tem sido causa de desflorestamentos e guerras. A analogia fora feita antes dele, - Marx - não em sentido essencialmente pejorativo. Heine, por exemplo, escreveu em 1940:

“Bendita seja uma religião, que goteja sobre o amargo cálice da humanidade sofredora algumas doces e soporíferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, fé e esperança”.

Quatro anos depois, Marx diria:

"A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como ela é o espírito de uma situação sem espiritualidade. Ela é o ópio do povo”. 

Não vejo nada de condenável na frase de Marx, a ponto de que alguns sintam a necessidade de abrir exceção para algum conjunto de dogmas em particular. Creio que ela seja aplicável a toda e qualquer religião, sem significar que esta seja digna de perseguição por causa disso ou que isto a torne prejudicial à sociedade. O ópio, que para muitos é simples alucinógeno, para outras é visto como uma fonte de cura, como acontece com a religião. O que me parece incontestável é que a manifestação de fé - qualquer uma - tenha esse efeito narcotizante  sobre a dura realidade e traga sentido à vida. A visão religiosa retrógrada, produtora e vítima de equívocos, trouxe danos irreparáveis à humanidade e ao planeta. É para os perigos do mau uso da fé que busco chamar a atenção.

Você buscou justificar o silêncio divino e ao fazê-lo não anulou o fato de que ele permanece calado diante de tantos absurdos feitos em seu nome. O fato é que o ser humano tem dado voz aos seres espirituais e nada mais  ouve além da própria voz dizendo-lhe o que gostaria de ouvir. O ser que faz epifania na fumaça do ópio tem dito coisas terríveis, indignas de nossa aceitação. É a isso que me refiro no poema.

Você entendeu bem a parte referente à Sarça Ardente. Usei o episódio bíblico como analogia, transpondo-a para nossa realidade. Seu entendimento da imagem do cão-miúdo não reflete o que pretendi transmitir. Cão-miúdo, em uma de suas várias acepções quer dizer "pobre de espírito, - um pobre diabo, por assim dizer. Trata-se de um diabo pequeno, "humano, demasiado humano", como diria Nietzsche. Não se trataria de um ser mítico, mas do próprio homem agindo em nome de seres doutra esfera.  Detalhe: por cão-miúdo eu não quis dizer Bolsonaro. Quis exprimir o que penso de madeireiros e agropecuaristas supostamente patriotas, mas de visão limitada, ególatra. A Bancada da Madeira, ao fazer coisas mesquinhas, poderia ser o cão-miúdo. Por incrível que possa parecer, caro Belchior, alguns religiosos extremistas veem o que ocorreu na Amazônia como ação direta de Deus, irado com a libertinagem que tanto incomoda os conservadores. Semelhantemente, quando choveu apagando alguns focos, houve quem gravasse vídeos dizendo que Deus mandara água e que desse modo mostrava de que lado estava. Em suma, eu ponho no homem a capacidade de fazer o Bem e o Mal, e não o contrário.

Por duas ou mais vezes você faz referência ao Espiritismo. Numa delas, o põe como exceção à analogia do ópio e no outro me recomenda O Livro dos Espíritos. Sendo espírita, você deve ser sabedor de que na última eleição importantes figuras do Espiritismo se posicionaram favoravelmente à onda conservadora que resultou no que ora vemos e experimentamos. Divaldo Franco, por exemplo, mostrou estar em sintonia com o pensamento conservador e pseudo moralista. Claro que não se tratou de algo oficializado, pois houve muitos embates no meio por causa disso. Muitos se decepcionaram grandemente com o ilustre kardecista e alguns até esfriaram na fé por causa disso. Portanto, imaginar que a leitura do Livro dos Espíritos nos livraria dos enganos comuns ao ópio da fé, não se sustenta com o que temos visto ao longo da história do Espiritismo. E isso acontece porque, à semelhança de meu poema, ele não será visto por todos do mesmo modo. Prova disso são as divisões do movimento espírita.

Você finaliza dizendo que levantar a bandeira dos ensinos de Jesus seria nossa única salvaguarda. Embora simpatizante e defensor das ideias do Cristo, não creio nisso e explicarei a razão. 

Provavelmente não há nenhum nome que tenha tão sido mal utilizado quanto o de Jesus, empregado nas esquinas onde falsos carentes mendigam, nos púlpitos onde se extorque as ovelhas e nos congressos onde se aprovam leis tenebrosas. Eduardo Cunha, por exemplo, comprou o domínio jesus.com. Sugiro que assista a minissérie de 4 capítulos “The Family, a democracia ameaçada” (Netflix). A série versa sobre um grupo poderosíssimo que atua nos bastidores da política americana, existente há quase 60 anos, responsável por decisões e acontecimentos históricos terríveis. O interessante é que o lema desta entidade e poder de atração está na palavra JESUS. A centralidade do que disse e fez o Cristo no norteamento de suas atividades é, à primeira vista, encantador. Não passa, porém, de mais um engodo. Desnecessário é lembrar que a citação de João 8:32 foi determinante para a vitória da extrema direita no Brasil.

Por causa disso, sou mais propenso a pensar como o teólogo italiano Enzo  Bianchi, que disse:

"Eu pertenço a uma geração [...] que nunca citaria o Evangelho no parlamento, por respeito ao Evangelho e o estado secular.".

Finalizo falando de minha alegria por meu poema ter sido objeto de sua acurada atenção. Espero que, mesmo com diferentes concepções de mundo, nossos pensamentos convirjam para o Bem Comum.

Abraços!

Santa Cruz, 27.08.2019







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