quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

CONSELHO AOS SAUDÁVEIS

  



quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

ESMOLA GRANDE - Gilberto Cardoso dos Santos

 


ESMOLA GRANDE - Gilberto Cardoso dos Santos

 

Era linda! Habilmente talhada nalgum App, talvez. Apareceu do nada, minimamente vestida, e me adicionou no Facebook. 

Era da Inglaterra, mas se achava em Paris. Suas primeiras palavras foram: "Hi, Mr. Santos! E passou a comunicar-se em espanhol. Aqui acolá, uma expressão em francês. Começou a me abordar na janela do Messenger. Graças à ajuda do Google Tradutor, começamos a nos comunicar em espanglês e portunhol. Conversas breves e reticentes de minha parte! Estava relativamente feliz pelo contato, pois vi naquilo (sem pensar naquilo) uma possibilidade de intercâmbio. Imaginei meu livro fazendo sucesso na Inglaterra e na França. Mas uma pulga me incomodava atrás da orelha.

Dois dias depois, um policial abordou-me pelo Messenger. Parecia nervoso. Perguntou se eu conhecia aquela mulher de nome estranho que aparecia em meus contatos. Disse-lhe que não. Indaguei o motivo da pergunta, mas ele nada acrescentou. Deixou-me no vácuo.

Aí foi a vez do evangélico. Veio fazer uma entrega e perguntou se eu conhecia "Beltrana de Tal". Espantei-me com a curiosidade, disse-lhe que não e  que ele era a segunda pessoa que me perguntava aquilo. Então ele contou-me: 

"Eu vi que ela é nossa amiga em comum. Essa mulher me adicionou, começou a puxar conversa pela janelinha. Me mandou uma foto bem sensual e eu caí na besteira de dizer que queria ver ao vivo. Depois, se mostrou na Webcam e pediu que eu abrisse a minha câmera também. Abri, até mesmo pensando em convertê-la pra Jesus. Tinha terminado de chegar da igreja e ainda estava com a roupa do culto. O pastor havia dito que a gente deve aproveitar o tempo nas redes sociais pra evangelizar. Ela pediu que eu abrisse a Bíblia e lesse algo bonito pra ela. Minha Bíblia é daquelas da capa de couro e tem um zíper. Abri e li João 3:16, traduzindo pra o espanhol. Ela achou linda a minha voz e disse que estava "apasionada". Depois, mudando bruscamente de assunto, sugeriu que eu puxasse outro zíper, o da calça. Dizia-se enchanté por mim. Caí na cilada e fiz os gostos da capetinha. Era tentadora demais! A carne é fraca, você sabe como é. Acabei estourando o champanhe. Deu trabalho limpar a tela do notebook. Não vigiei e agora estou hiper lascado, super arrependido!".

"Por quê?", perguntei. "Peça perdão a Deus e passe a ter mais cuidado."

"O problema é que a danada depois disso passou a me pedir grana. 'Money', disse ela. 'I need dinero'. Quando eu disse 'Yo no tengo', ela me ameaçou. Disse que havia gravado tudo que eu fiz, que ia mostrar a minha mulher e divulgar na Internet! Fui conferir, e vi que ela havia adicionado minha esposa também! Ah, bicha safada!"

Vendo-o tão desesperado, fiquei feliz por não ter caído na lábia da gringa. Senti-me um José do Egito, quando vitorioso sobre os assédios da esposa de Potifar. Disse-lhe: "Ainda bem que eu desconfiei desde o começo. Achei a esmola grande. Outro dia vi uma reportagem sobre quadrilhas especializadas nesse tipo de crime. Há muita gente sendo extorquida; pobres vítimas de esquemas bem parecidos com esse daí. Há golpes dessa natureza direcionados também para mulheres.  E agora, o que você pretende fazer?"

"Rapaz, eu não tenho a menor ideia. Estou em tempo de enlouquecer! Nem tenho dormido direito. Se minha  família pelo menos sonhar que eu estou nessa enrascada, estou frito. Já pensou se a irmandade tomar conhecimento disso? Já pensou se uma pessoa que tem o dom da revelação for usada por Deus pra me denunciar diante da esposa num culto? Acho que nem vou ao templo hoje. E o meu emprego, como é que fica? Vou ser posto no olho da rua! E o pior é que eu nem tenho dinheiro pra dar pra ela. Tou devendo a Deus e ao mundo."

"Lamentável, amigo. Não sei nem o que lhe diga. Terrível a sua situação! Aconselho que não conte a ninguém da igreja o que lhe aconteceu para que não aumente o risco de vir a ser revelado."

"Eu quero que você pelo menos ore por mim. Sei que não é mais evangélico, mas em suas orações não se esqueça de mim. Eu estou tão aflito que já pensei em fazer besteira, acredita? Ontem à tarde, bicho, se eu tivesse um revólver cheio de bala, teria descarregado os seis tiros na minha cabeça!"

"Calma, amigo,  é provável que só conseguisse atirar uma vez. Mas tire isso da sua cabeça. Pense positivo, ore, torça pra que ela esteja blefando. Bloqueie esse demônio, suma do Facebook, mude seu e-mail, faça o que estiver ao seu alcance."

"Ok, acho que vou fazer isso mesmo! Depois a gente conversa mais; atrasei-me nas entregas. Valeu!" E saiu às pressas atendendo o celular, visivelmente fora de si.

Assim que ele se foi, fui fazer o que havia recomendado. Desfiz a amizade e bloqueei-a. Vade retro! De lá pra cá, sempre que uma estrangeira me envia solicitação de contato, rejeito sem titubear. Desde então, quando abro o Facebook, não mais a vejo, tampouco ao desesperado irmão que deve ter deletado de vez o seu perfil. Nunca mais o vi.

Ontem sonhei com ela diante de mim, envolta por um camisolão transparente. Piscou o olho maliciosamente e disse: "Hi, Mr. Santos!" No sonho, eu corri e despertei no chão; acordei machucado, mas aliviado.

Quanto a esmola é grande, até o Mr. Santos desconfia.


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segunda-feira, 2 de novembro de 2020

REFLEXÕES DE UM PRÉ-FINADO

 



REFLEXÕES DE UM PRÉ-FINADO 

Hoje amanheci sentindo necessidade de refletir sobre a morte, mas de modo vago e sem muito compromisso com conclusões pois, como disse Fernando, "a única conclusão é morrer". Resolvi  rever o que o Eclesiastes diz a respeito da indesejada. Logo no capítulo 1 (verso 11), encontrei o seguinte: 

"Ninguém se lembra dos seus antepassados. E também aqueles que lhes sucedem não serão lembrados por seus pósteros."

Coloquei à prova a afirmação e não consegui ir além de minha avó materna, a quem não conheci, que tocou fogo em si mesma antes que eu viesse ao mundo. Minha mãe, por sua vez, morreu antes que eu completasse os quatro anos; não teve tempo de repassar-me o  pouco que devia saber. Sou filho bastardo. Venho de famílias pobres, destroçadas e fadadas ao anonimato. 

O que as pessoas sabem sobre seus antepassados, quando o sabem, é em geral bastante vago e dependerá da importância social que estes tiveram.    Os mórmons, por seu interesse em batizar-se pelos que já se foram, tentam inverter essa realidade, mas se fizéssemos uma consulta ampla, veríamos que este versículo representa a realidade de 99 por cento da humanidade. Um amigo escritor disse-me que, não crendo em uma outra vida, esperava imortalizar-se através de seus livros. De fato, deixar uma obra escrita - desde que significativa - é um dos poucos meios de que dispomos para que nosso nome permaneça na posteridade. Confesso-lhes que isso para mim não faz muito sentido, pois estarei morto de qualquer jeito. Se num céu ou num inferno, ter meu nome divulgado em futuras gerações parece-me bem pouco relevante. E se completamente morto, de nada me adiantará.

O fato é que seremos esquecidos e talvez só ocasionalmente lembrados, em dias como o de hoje. Eclesiastes 2:16 nos diz em linguagem atualizada:

"Ninguém lembra para sempre dos sábios, como ninguém lembra dos tolos. No futuro todos nós seremos esquecidos. Todos morreremos, tanto os sábios como os tolos."

O livro de Eclesiastes, dizem alguns, foi escrito por alguém que estava com depressão. Não duvido disso. Parece ter sido escrito por alguém que viveu na abundância e descobriu por experiência própria que o prazer não nos garante a felicidade. A visão pessimista dele ecoa nos versos de Ruben Dario, que disse em "LO FATAL":

   "Feliz é a árvore que é apenas árvore.

E também a pedra porque ela não tem vida,

Pois não existe dor maior do que estar vivo,

Nem maior desespero do que a vida consciente.


Ser e não ter rumo certo.

E o medo de ter sido e um futuro pavor,

E a certeza espantosa de amanhã estar morto


E sofrer pela vida,  pela morte,

Pelo que não sabemos e apenas suspeitamos.

E não saber aonde vamos

Nem de onde viemos...!"

Sempre que medito na mensagem do Eclesiastes e nestes versos, recordo-me do clássico filme Sociedade dos poetas mortos. Em sua primeira aula, o polêmico professor Keating (Robbin Williams) pede que um dos alunos leia a primeira estrofe do poema intitulado PARA AS VIRGENS, QUE APROVEITEM O TEMPO:

Colham botões de rosas enquanto podem,
o velho Tempo continua voando:
E essa mesma flor que hoje lhes sorri,
Amanhã estará expirando.

Depois, explica que o termo latino equivalente a este sentimento é CARPE DIEM, "aproveite o dia", e pergunta que motivo teria levado o autor (Robert Herrick, 1591 - 1674) a escrever aqueles versos. E por fim explica:

"Porque somos pasto para os vermes, rapazes. Acreditem ou não, todos nesta sala um dia vamos deixar de respirar, vamos ficar frios e morrer."

Em seguida, leva-os para um painel de fotografias das turmas antigas e, enquanto lhes direciona o olhar para certos detalhes, diz:

"Não são muito diferentes de vocês, não é? O mesmo corte de cabelo. Cheios de hormônios, como vocês. Invencíveis, como vocês se sentem. O mundo é a ostra deles. Acreditam estar destinados para grandes coisas, como muitos de vocês. Os olhos deles estão cheios de esperanças, como o de vocês. Eles esperaram até ser tarde demais para mostrarem do que eram capazes?  Mas se vocês se aproximarem melhor, nos ouvirão sussurrar o legado deles. Aproximem-se. Escutem. Ouvem? Carpe. Carpe diem. Aproveitem o dia, rapazes. Tornem a vida de vocês extraordinárias." 

Vejo grande semelhança entre este filme e a mensagem de Eclesiastes, ao qual o teólogo e pastor René Kivitz chama de "O Livro Mais mal-Humorado da Bíblia".

O objetivo, porém, deste filme e do livro de Salomão não é nos deixar em um baixo astral profundo, mas nos dar  motivos para sermos felizes dentro das reais possibilidades que a vida nos oferece. O filme e o livro bíblico querem nos alertar contra o perigo de vivermos mecanicamente, mais preocupados com o TER que com o SER. O "Carpe diem", no Eclesiastes aparece em alguns trechos como, por exemplo, no cap 8:5: 

"Portanto aconselho que se desfrute o melhor que a vida pode proporcionar, porquanto debaixo do sol não existe nada mais feliz para o ser humano do que simplesmente: comer, beber e alegrar-se. Essa é a felicidade que nos ajudará a superar os difíceis dias de trabalho durante todo o tempo de vida que Deus nos conceder debaixo do sol!"

Carpe diem (aproveite o dia) não significa trabalhar em excesso, entregar-se ao estresse e sim, usufruir das alegrias disponíveis. Não significa, também, que devamos cair no extremo apontado por Paulo, já presente em sua geração: "Comamos e bebamos que amanhã morreremos.". O eu lírico do Eclesiastes nos diz:

"Então resolvi me divertir e gozar os prazeres da vida. Mas descobri que isso também é ilusão." (Ec. 2:1)

A busca do prazer, ao ultrapassar certos limites, torna-se uma fonte de infelicidade. O Carpe diem, para alguns, infelizmente, se transformou num suicídio a prestações.

Sempre que  penso neste filme temo pela possibilidade de efeitos nocivos. Nem todos o entendem adequadamente. Penso  no fim trágico  de um dos personagens e me pergunto até que ponto essa nova percepção da vida - meio míope, segundo entendo, no caso dele - não foi também responsável por seu suicídio.

O próprio ator que protagonizou tão bem o filme provocou seu próprio fim e a gente se pergunta o quanto da trama que o imortalizou teve influência em sua morte. Talvez nenhuma, claro. 

À semelhança do Eclesiastes, atribuído ao rei Salomão, há um poema que dizem ser da autoria de Walt Whitman, que muitos julgam erroneamente ser o poeta referido no filme Sociedade dos Poetas Mortos. intitulado Carpe Diem e provavelmente apócrifo, o poema diz:

Aproveita o dia!
Não deixes que termine sem teres crescido um pouco.
Sem teres sido feliz, sem teres alimentado teus sonhos.
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém te negue o direito de expressar-te, que é quase um dever.
Não abandones tua ânsia de fazer de tua vida algo extraordinário.
Não deixes de crer que as palavras e as poesias, sim, podem mudar o mundo.
Porque passe o que passar, nossa essência continuará intacta.
Somos seres humanos cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis.
Ela nos derruba, nos lastima, nos ensina, nos converte em protagonistas de nossa própria história.
Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua, tu podes trocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar, porque só nos sonhos pode ser livre o homem.
Não caias no pior dos erros: o silêncio.
A maioria vive num silêncio espantoso. Não te resignes, nem fujas.
Valorize a beleza das coisas simples, se pode fazer poesia bela, sobre as pequenas coisas.
Não atraiçoes tuas crenças.
Todos necessitamos de aceitação, mas não podemos remar contra nós mesmos.
Isso transforma a vida em um inferno.
Desfruta o pânico que provoca ter a vida toda adiante.
Procures vivê-la intensamente sem mediocridades.
Pensa que em ti está o futuro, e encara a tarefa com orgulho e sem medo.
Aprendes com quem pode ensinar-te as experiências daqueles que nos precederam.
Não permitas que a vida se passe sem teres vivido!

O poema difere em muito do estilo do irreverente poeta, tem uma forte pitada de autoajuda e  sucesso garantido entre os internautas. Não deixa de ser interessante por isso. 

Enquanto divagava sobre estas coisas, coloquei Epitáfio, dos Titãs, no loop:

"Devia ter amado mais
Ter chorado mais
Ter visto o Sol nascer
Devia ter arriscado mais
E até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer

Queria ter aceitado
As pessoas como elas são
Cada um sabe a alegria
E a dor que traz no coração

O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar

Devia ter complicado menos
Trabalhado menos
Ter visto o Sol se pôr
Devia ter me importado menos
Com problemas pequenos
Ter morrido de amor

Queria ter aceitado
A vida como ela é
A cada um cabe alegrias
E a tristeza que vier

[...]

Devia ter complicado menos
Trabalhado menos
Ter visto o Sol se pôr."

Sempre que ouço essa música, emociono-me. Lembro das vezes que a cantei com meus alunos. Era meu modo de dizer-lhes "carpe diem". Fico a pensar em quantos viveram ou têm vivido inadequadamente suas vidas, mas me pergunto: Vale a pena sofrer pelo que não tem mais jeito? Haverá, porventura, alguém na face da Terra que tenha existido de modo perfeito? Como seria uma existência realmente ideal? Não encontro respostas, exceto dogmáticas.

Hoje acordei tarde; teria indevidamente desperdiçado a manhã? Me senti tão  bem acordando tarde... após o café, deu-me o desejo de escrever estas coisas, uma crônica, talvez. O dia é propício para que pensemos em nossos queridos que deixaram de existir. Quantas mortes surpreendentes, inesperadíssimas, durante esta pandemia!

Concluo este texto lutando contra a tristeza. Preguiçosamente, ponho um ponto final em minhas ilações, faltando um minuto para o meio-dia. O dia é propício para que bem o aproveitemos, mas como fazê-lo exatamente hoje, com tantas lembranças tristes?

Gilberto Cardoso dos Santos 

Santa Cruz, 02.11.2020.

facebook.com/gcarsantos          email: gcarsantos@gmail.com










domingo, 30 de agosto de 2020

O ABECÊ DA DOUTORA - A vida de Valdenides num folheto de cordel

 



A REALIZAÇÃO DE UM SONHO (Gilberto Cardoso dos Santos)

Quem tem o privilégio, como eu, de conhecer de perto a professora Valdenides Cabral, pos-doutora em Teoria da Literatura, sabe de seu genuíno interesse pela poesia popular. No mestrado, descobrimos a razão: foi através de clássicos do cordel, lidos por seu pai, que ela começou suas incursões literárias. Poetisa dos versos brancos e livres, vez por outra nos falava de seu sonho de um dia ter seu próprio ABC de cordel. Eu a incentivava pra que tentasse fazê-lo. 

Um dia surpreendeu-nos com o sonhado poema, ao qual intitulou de ABC Desmetrificado. Expôs as estrofes no telão e pediu-me que as lesse pra turma. De fato, não se enquadravam cem por cento nos requisitos do gênero pretendido, excessivamente rigoroso quanto a exigências de "Rima, Métrica e Oração," mas era um belíssimo texto! Fez-me pensar em Morte e Vida Severina, poema de João Cabral de Melo Neto, escrito, segundo o próprio autor, com a pretensão de ser um cordel. Ele frustrou-se na expectativa, mas tinha produzido algo que viria a tornar-se o carro-chefe de sua obra. De igual modo, Valdenides acabara de produzir um de seus melhores poemas.

Desde o começo, achei lindo esse desejo dela, acalentado desde a infância. Durante a Pandemia de 2020, solicitei o texto e, entre um combinado e outro, burilamos o que já estava bom a fim de ajustá-lo às formalidades do gênero. Eis o cordel.
 

O ABECÊ DA DOUTORA - A vida de Valdenides num folheto de cordel

  (Autores: Valdenides Cabral e Gilberto Cardoso dos Santos)

A

Aqui fala Valdenides

De sobrenome Cabral

São José do Sabugi

É minha terra natal

Sou filha do Seridó

Residi em Caicó

Distante da capital.

B

Bem verdade é que Deus dá

Somente um verso ao poeta

E ao restante do poema

É o diabo quem completa

Vou contar a minha história

De poesia e vitória

Com o diabo longe meta.

C

Como me tornei poeta

De mim mesma me perdi

E um dia, lá nas cacimbas

Do meu velho pai ouvi

“Tome tento na subida

Pois é íngreme a descida

Faça como a adverti.”

D

Disse: “Evite escorregar

Pois o erro é doloroso

Só Jesus Cristo desceu

E subiu vitorioso

E quando no céu chegou

Feito Deus comemorou

E disse todo manhoso:”

E

“Enquanto estive na Terra

Muita coisa sucedeu

Mas no meio dos enganos

Meu poder prevaleceu

Nem mesmo na minha infância

Pratiquei alguma errância

Por isso lá mando eu!”” 

F

Foi meu pai, sábio nas coisas

Da Terra e do Céu também

Que queria que eu vivesse

Da maneira que convém

Pra tudo quanto dizia

Orientava ou pedia

Queria ouvir meu amém.

G

Gentil às vezes, queria

Que eu fizesse um juramento

De perder a virgindade

Somente no casamento

Ou, pra não ser rapariga

Nesse mundão duma figa

Que eu entrasse num convento.

H

Honrada eu devia ser

Rezar, pedir oração

E não viver nessa vida

Entregue à corrupção

Pra não virar pecadora
 
Nem ser uma sofredora 

E cair na perdição.

I

Idílico, cantarolava

Versos para me ninar

E me mostrava as princesas

E os príncipes d’além mar:

E eu dormia sonhando

Tanta coisa imaginando

Que não quero nem lembrar.

J

João Evangelista eu via
No Pavão Misterioso

Que levantou voo da Grécia

No seu transporte engenhoso

Princesa da Pedra Fina,
De Magalona e Porcina

Na voz do pai cuidadoso.

L

Lembro que escrevi uns versos

E botei meu pai pra ler

Ele os chamou de coisas

E me mandou refazer

Disse assim: “Faça cordel

Seja à métrica fiel

Sem das rimas esquecer.”

M

Mas não fiquei desgostosa

Ao ver o seu desprazer

Pois conhecia o meu velho

E esse seu jeitão de ser

Na sua simplicidade

Mostrava sinceridade

Jamais tentou me ofender.

N

Não deixei de ser poeta

Apesar da frustração

Poetizando sem rima

E sem metrificação

Meu velho não entendia

Pois cordel não parecia

Eram versos sem noção.

O

O tempo me deu uns príncipes

Do reino da poesia

E princesas da palavra

Gente que me comovia

Gilberto Mendonça Teles

Também Cecília Meireles

Quintana me divertia.

P

Perdi-me, mas me encontrei

Na poética de Alfonsina

De Zila, Diva, Marize

Hilda, Lígia e Marina

Conceição, Adélia Prado

Poetas do meu agrado

Cuja escrita me fascina.

Q

Quando um João, não o Evangelista

Que também era Cabral

Me conduziu às alturas

Com a poética original

Não de cordel, certamente

Cheio de rima aparente

Senti algo especial.

R

Radiante, achei na prosa

A essência da poesia

Cortázar me fez alada

Com as penas da fantasia

Vi-me uma Alice no espelho

E ao conversar com o coelho

Achando-me, me perdia.

S

Somente nas poesias

Ao meu pai não agradei

Graças aos livros que li

Professora me tornei

Íngreme foi a jornada

Mas eu me tornei prendada

E no lar me recatei.

T

Tive o prazer de encontrar-me

Na função de educadora

Asas de livros abertos

Me tornaram pós-doutora

Hoje, já aposentada

Professora e mãe amada

Sinto que fui vencedora.

U

Uns cordéis de carne e osso

Ainda pude fazer

Rimados, metrificados

Como deveriam ser

A minha filha e meu filho

Aos meus olhos trazem brilho

E desejo de viver.

V

Vou aos trancos e barrancos

Com medo de escorregar

Dizendo Madadayô,

Mandando o fim se afastar

Prossigo de fronte erguida

E até o ocaso da vida

Eu quero poetizar.

X

Xucra ao tracejar meus versos

Na brancura do papel

Ainda quero um poema

À rima e à métrica fiel

Repleto de poesia

Que caiba na melodia

Da voz de um bom menestrel.

Z

Zelosa em tudo que faço

Quero ter um ABC

Que agradaria a meu pai

Como o que agora lê

Um resumo da existência

Aninhado na cadência

Completo, de A a Z.



Por fim, eis poema que já nasceu belo em sua versão primária:



ABC DESMETRIFICADO (Valdenides Cabral)

Se é verdade que Deus dá ao poeta
o primeiro verso
e o Diabo responde pelos outros,
vou contar a vocês a minha história,
que por ser tão cheia de vitórias,
dispensei a ajuda do segundo,
para traduzir no meu verso
o dia que me perdi de mim
pra ser poeta.

Um dia, lá longe, nas Cacimbas,
onde se perdeu a minha infância
ouvia meu pai dizer
tome tento na subida
porque o que dói nas errâncias,
neste mundo de Meu Deus,
é a íngreme descida
que só o Grande desceu.
E subiu vitorioso,
cheio da empáfia dos Deuses,
dizendo todo manhoso
que lá “também mando Eu”.

Meu pai sabendo das coisas
da Terra e do Céu também,
fez-me fazer juramento
que neste mundão de uma figa
não virasse rapariga.
Melhor viver num convento,
rezar, pedir oração,
pra não virar pecadora
nem ser uma sofredora
como as que o mundo já tem.

Cantarolava seu versos
como canção de ninar
E me mostrava as princesas
e os príncipes d’além mar:
o João Evangelista,
do Pavão Misterioso
Princesa da Pedra Fina,
Magalona e Porcina
e eu dormia sonhando
com Castelos e feitiços,
com fadas e precipícios
que não quero nem lembrar.

E quando escrevi meus versos
E meu pai chamou de coisas,
Mandou logo refazer: faça cordel
Que é meu gosto.
Se não conhecesse o velho
E o seu jeitão de ser,
Tinha sentido desgosto.

E fui crescendo na vida
Conhecendo outros príncipes
Desses que escrevem livros,
Me deixando dividida:
Bandeira, Quintana, João,
Cabral que nem eu, por certo...
Depois um tal de Gilberto
Que tocou meu coração.

Também conheci princesas:
Lígia, Clarice, Marina,
Hilda, Cecília, Adélia,
Zila, Diva e Marize,
Todas livres, acenando
pros versos que ainda não fiz.