SE ARREPENDIMENTO MATASSE..
Pouquíssimas
coisas são tão eficazes em produzir bons sentimentos quanto a sensação de estar
certo, de ter procedido corretamente. Já ser enganado, fazer papel de bobo,
sentir a consciência com o dedo em riste não é nada agradável.
Após
ver as tristes notícias sobre os rumos sombrios que o país está tomando –
cortes e mais cortes nos já parcos recursos – fui para a feira, tristíssimo por
um lado, mas feliz por não ter parte nisso tudo que está ocorrendo.
Seguia
eu tomado por esses sentimentos conflitantes quando um feirante estendeu-me a
mão, e disse: Olá, meu amigo! Você é uma
pessoa a quem eu posso chamar de meu
amigo, não aqueles que estão lá em cima, esses políticos safados e
enganadores!
Estranhando
a saudação e o gesto, observei e vi que não estava bêbado. Conheço-o há um bom
tempo, confio muito nos produtos que me vende. É daquele tipo de homem simples,
de pouco estudo, que odeia mentira, que busca honrar os fios do bigode. O gesto
inusitado me surpreendeu porque ele em geral se mostra desconfiado; é de poucas
palavras e nada expansivo; Tivéramos, além disso, certo estranhamento no último
pleito eleitoral. Tacitamente, sem que externássemos qualquer acordo, chegamos
ao ponto de evitar tratar do tema em nossos poucos encontros sabáticos. Limitávamo-nos
ao mútuo envio de vídeos pelo Messenger e às relações de compra e venda. Nunca
nos tratamos com desrespeito. Com diplomacia, mas em vão, busquei abrir seus
olhos durante a campanha. A surpresa só não foi maior porque, depois da vitória
de seu candidato, vi-o mudado, compartilhando algumas postagens minhas
contrárias à Reforma da Previdência
Quando
retornei, acrescentou: Eu sou muito mole,
professor! Só duas vezes inventei de me envolver com política e fazer campanha:
na eleição de Fernando Collor e nessa. Pense num arrependimento grande, meu
amigo.
Só ri,
respeitosamente, e depois disse alguma coisa para justificar e intensificar sua
decepção. Apareceu outro freguês; aproveitei e disse que precisava ir noutra banca;
ao voltar, passaria por lá, pra continuarmos a conversa.
Voltei,
e ele me apresentou a razão de sua frustrada paixão pelo presidente: Sabe por que decidi votar nele? Por causa
daquela frase que ele repetia: ‘Conhecereis a verdade e a verdade vos
libertará’. Eu achava aquela frase bonita e pensava ‘esse é um homem de Deus’.
Mas me enganei feio! Ah, miserável
mentiroso! Mas ele vai pagar caro! Deus tá vendo o que ele fez, usando a
palavra dele com mentira.
Nesse
instante, tive outra surpresa: chegou um senhor branco, baixo e gordo, até
então desconhecido; perguntou ao vendedor, com ar agitado: Esse é o professor de quem você falava, né? E dirigiu-se a mim: Professor, nós, lá no IFRN, estamos no maior
desespero. Bem que o senhor vivia avisando a ele. O coordenador do IF chorou e
tudo, disse que não podia fazer nada, infelizmente. Segunda-feira serão
demitidos dois funcionários já, e isso é só o começo. Eu trabalho lá há 11
anos, mas pelo jeito também vou ser despedido. Eu sou auxiliar de serviços
gerais. Sou pai de família e estou preocupado com meu futuro. Morro de vergonha
do voto que dei, fico lá calado, com medo que eles me culpem, pois eu achava
que a educação ia melhorar, não piorar desse jeito. Como é que pode mexer num dinheiro que já é pouco, fazer um negócio
desses com a gente?
Muito triste, amigos, disse-lhes eu. Países que deram certo como Finlândia,
Canadá e Holanda, investiram muito em educação e o resultado é que se tornaram muito
prósperos. Nós estamos indo na contramão.
Ao fim
de nossa conversa, quando já me dirigia a outra banca, deparo-me com J. Nildo,
evangélico. Este passava o dia inteiro e boa parte da noite no Facebook
defendendo a candidatura de um mito, em nome de Deus.
Não
resisti e disse: Anda calado, sumido das
redes sociais... o que é que está acontecendo, amigo?
Resposta:
Rapaz... é muita ocupação. Chego em casa, janto, logo
bate o sono e vou dormir.
Eu entendo, disse-lhe. Percebo que tem muita gente passando por isso ultimamente. A gente
abusa, né? Facebook já não é mais como antes. Disse-lhe, e fui conversar um
pouco com um vendedor mais à frente, também decepcionado. Não confio mais em nenhum desses ladrões. Fiz papel de besta, pode
acreditar, professor!
Por
último, entrei na barbearia de um amigo, cuja cabeça não consegui fazer durante
a campanha - arrependidíssimo por haver apostado todas as fichas numa miragem.
Com tanta raiva e vigor se exprimia, que temi pelo cliente de quem tirava a
barba. Este não resistiu e, mesmo com a navalha ao pescoço, balançou a cabeça
afirmativamente, e disse repetidamente: É
verdade.
Completei,
então, para mim mesmo, a frase que intitula a crônica:
SE ARREPENDIMENTO MATASSE,
MUITOS ELEITORES JÁ TERIAM MORRIDO.
Gilberto
Cardoso dos Santos
Meu querido amigo, mago das letras, artista das palavras.
ResponderExcluirAprendemos, também, com nossos erros.
O ser humano é pródigo em encontrar soluções para trilhar caminhos tortuosos. Já passamos por coisa pior, embora o fundo do poço ainda não tenha chegado.
Mestre das palavras!!
ResponderExcluirO Cronista é repórter dos anseios do povo. Nesta e outras crônicas, você desempenha este papel,
além das nossas expectativas
João Maria de Medeiros
Palavras perfeitas!!
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