Na sequência: Josiene Santos, Francisco Marinho, Jack e Gilberto Cardoso
Sábado pela manhã em Pipa, achava-me num oásis, na Pousada
Oásis. Mas não estava bem.
Jack d’Emilia entrou em contato
convidando-me a ir para uma palestra que seria ministrada por Francisco
Fernandes Marinho. Disse-me que seria numa escola, perto da pousada. Disse que
valeria a pena, mas deixou-me à vontade, disse: “Senão, aproveite e vá tomar um
banho de mar na Baía dos Golfinhos.”
Disse-lhe que não amanhecera nada
bem. Na noite anterior, durante o FLIPAUT, tinha consumido uma fatia de torta
com prazo de validade aparentemente prolongado e, por consequência, achava-me
no vaso, em pose semelhante à da escultura de Rodin, só que com um celular na
mão.
Maldita torta, pensava eu.
Estragou minha manhã potencialmente paradisíaca. Dizem que o barato sai caro,
mas em Pipa há também o caro que não sai barato. Durante todo o evento estivera
demasiado exposta. Fumantes a rodeavam.
Conversavam, negociavam... e ela ao centro. Convidativa? Nem tanto. Depois
pensei nas micropartículas de saliva que devem ter caído sobre ela. Achei que fizesse parte do mostruário, mas era a dita cuja. Eram quase
dez horas da noite quando a comi. Não havia jantado por causa do café reforçado
que tomara na pensão pela manhã.
Jack, ao celular, lembrou-me que
na escola onde ocorreria a palestra havia sanitários.
Um pouco antes das dez, rumamos a
pé para o evento. Jack, italiano radicado no Brasil há décadas, não sabia de
minha proximidade com Francisco Marinho, tampouco do interesse que tinha em revê-lo
após tantos anos. Seguimos, enquanto ele falava da importância daquele evento.
Tratava-se do pré-lançamento de um livro intitulado ANTÔNIO JOSÉ MARINHO, O
DEFENSOR DA NATUREZA NA PRAIA DA PIPA. O palestrante, dizia-me ele, era uma
pessoa de grande importância intelectual, cultíssimo – um dos pouquíssimos
brasileiros a ter acesso aos documentos secretos do Vaticano.
Quando chegamos à escola, foi
aquela festa de reencontro! O Marinho demorou alguns segundos até que caiu a
ficha. Esperto que só ele, enquanto me mirava com afago perguntou-me como
estava o Sertão. Disse-lhe que tinha vindo de Santa Cruz e ele disse: “Eu sei.
E Santa Cruz não pertence ao sertão? Você é o Cardoso, o poeta.”
A palestra foi muito
interessante. Causou-me espanto saber que o avô de Francisco Marinho tinha sido
um dos fundadores daquela comunidade, daí o duplo interesse dele em resgatar
essa história, tão familiar.
Enquanto o ouvia, ficava me
perguntando qual a real importância daquilo tudo. Era importante, sem dúvida,
mas para inteirar-me do passado eu sacrificava o meu presente, e que presente:
perto dali, a Praia dos Golfinhos e a Praia do Amor. Minha esposa amanhecera
gripada, com dor de cabeça. Tinha dito que eu podia ir à palestra. Se chegasse
a hora do almoço e eu não aparecesse, ela sairia pra comer. Quando eu saísse do
encontro procurasse um lugar pra almoçar. Disse-lhe eu que não se preocupasse,
pois voltaria a tempo. Esforçava-me para controlar a atenção, mas
principalmente o intestino. As contrações perturbavam a mente. Pesquisas
modernas nos dizem que o intestino é nosso segundo cérebro. Pelo menos ele
parece influenciar e muito o que se passa em nossa cabeça. Eu nem queria
almoçar e ficava a pensar em coisas que desviavam a atenção. Marinho! Há décadas já era bem mais velho que eu. Como a personagem de Olhos nos olhos, de Chico Buarque, ele está remoçando. Será que já leu O estranho caso de Benjamin Button? O Fausto, de Goethe? De tão afeito ao giz, não se adaptou bem aos pincéis atômicos, disse-nos ao traçar uma árvore genealógica no quadro. Já teve diante de si tabletes cuneiformes, disse-nos. Será que foi nessa geração? O homem da Terra, um filmaço. Conta a historia de um professor que atravessa os milênios. Vou assistir de novo.
Estava ali, ao meu lado, o Jack,
filho de Emília; o aventureiro que saiu da Itália ainda jovem, que havia se encantado
com a informalidade e bom-humor do povo brasileiro. Notório o seu encanto pelo
litoral brasileiro (primeiro morou em Ponta Negra, depois mudou para Pipa);
também adora o Sertão. Frequentes são suas incursões pela caatinga; faz questão
de ir só, acompanhado por um cão, pois teme que alguém entre em apuros por sua
causa. Dessas experiências, extrai contos e crônicas. Parece-me, a julgar pelas coisas que aqui
relato, costumeiramente preocupado com o bem estar alheio. Interviu, logo no
começo da palestra, para lembrar aos presentes que, caso precisassem, a escola
dispunha de bebedouros e de sanitários. Percebi que me mirou de soslaio ao
finalizar a frase.
Poucos compareceram ao evento.
Dentre estes, a produtora cultural Josiene Santos.
À minha frente, o grande
Francisco Marinho, tão querido e admirado em Santa Cruz (Péricles, quando prefeito, o convidou para ser secretário de educação, mas recusou devido viagens e pesquisas. Se for convidado novamente, topará.) e em Pipa. Aliás, é figura de destaque no meio acadêmico do RN. O homem tem uma
casa cheia de livros. Só de autores potiguares ele tem uns 20 mil, devidamente
catalogados. Tenho certeza que nem parou para ler o meu Um Maço de Cordéis - lições de gente e de bichos, pensei, livro que lhe foi presenteado por Simony Nôga. Mas não se
espantem ainda, pois tem mais umas quarenta mil obras de autores diversos.
Uma das coisas que o impressionou
em sua visita aos arquivos secretos do Vaticano foram livros que, de tão
antigos, haviam se petrificado. Literalmente, pensei, haviam virado tijolos do
saber. Livros impenetráveis como os textos de Hegel, que ele adora tanto.
Lembrei-me da fatia de torta medieval e da ameaça aos meus caninos. O estômago
quis ensaiar uma pequena revolução.
Logo cedo, havia contendido com a
esposa por causa da provável causa da indigestão. Segundo ela, haviam sido as
castanhas. Quem já viu se comer duma vez um pacote de castanhas? Não fora de
uma vez, mas durante a viagem. Pouco mais de cem gramas. Nem percebera. Fiquei
na dúvida, mas continuei incriminando a torta.
Poucos compareceram ao evento.
Dentre estes, a produtora cultural Josiene Santos. O organismo febril deixou-me
meio chato e delirante. Perguntei ao Marinho sobre os negros escravizados,
responsáveis pelo progresso de Pipa. Fui mais fundo na divagação e indaguei sobre os índios,
decerto abundantes naquelas paragens paradisíacas. Ao falar em índios despertei
a atenção do Jack. Concordamos, em voz alta, que a história contada é sempre a
dos vencedores. Como se não bastasse tanta impertinência, perguntei sobre os
mártires de Cunhaú e de Uruaçu. O pobre do Marinho discorreu em profundidade
sobre o assunto e depois não sabia mais o caminho de volta. “Falávamos de quê
mesmo?”, indagou.
Pus-me a pensar naquele homem tão
culto, tão professoral e interessado por livros que me falava do passado de
Pipa. Ele não vive: ele lê e escreve, pensei. Sacrifica-se prazerosa e
masoquistamente pela leitura e pela escrita. Adora pesquisar, catalogar. Além
do que já publicou, há muita coisa iniciada, mas não concluída. Pesquisas
importantes. Projetos grandiosos. Energia não lhe falta, mas o número de horas
diárias não colabora. Valeria a pena, perguntei-me e uma vozinha interior citou
Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.”
O Jack parece não ficar muito
atrás. Disse-me que lê e escreve todos os dias. Seu interesse pelos livros não
deixa margem a dúvidas. Há anos organiza o FLIPAUT, criado como alternativa ao
FLIPIPA. Este último faliu, enquanto o FLIPAUT está mais firme que nunca, em
sua décima edição. Vários meses são dedicados por Jack à preparação desse
evento que não tem fins lucrativos.
Voltando à palestra: Marinho
contou a história de Antônio Castelo, um português que aportou em Pipa no
passado distante e apaixonou-se por uma jovem extremamente linda, a Rita Gomes
de Abreu; ela varria um terraço quando a viu pela primeira vez; de tal modo ele
se encantou por ela que, de imediato, a pediu em casamento e ajustou o enlace
para dali a seis meses! Voltou a Portugal e deixou Ritinha à espera, vítima da
zombaria e indiferença de uns, mas cheia de esperança de que ele cumpriria a
palavra. Os seis meses se arrastaram, e o noivo não voltou para cumprir a
promessa. Pobre Rita! Se antes a
consideravam tola, muito mais agora. Marinho encontrou no livro um trecho bem
romântico e o leu para a gente.
Disse-nos Marinho que, conforme
colhera dos mais velhos, todos os dias Ritinha subia o Morro da Ponta da Praia
da Pipa na esperança de ver alguma embarcação a cruzar o Atlântico, vindo em
sua direção. Seis dias após a data combinada, o noivo chegou trazendo
explicações convincentes para o atraso e pedindo mil desculpas. Ritinha não
fazia ideia do quanto ele se esforçara para chegar a tempo. Casou e ali mesmo,
ao pé do Morro, fixou residência com sua bela Rita. Pensei comigo: isso dá um
bom cordel.
Por falar em cordel, descobri na palestra que o
avô e o pai de Marinho também haviam escrito cordéis. Li alguns na boneca do
livro; minha surpresa só crescia. À
noite, no evento do FLIPAUT, viria a descobrir que sua irmã escreve e publica
cordéis (ao menos um tinha à venda)! Ele próprio, também, é poeta, além de
prosador.
O Jack cumpriu uma promessa feita
meses antes. Deu-me um livrinho de sua autoria que tem tudo que há num
cordel, menos a métrica e a rima. Acima do título – ASTRONOMIA INDÍGENA, O
Setestrelo – está escrito Literatura de Cordel. Definitivamente, ele é um fã do gênero. Na capa, temos uma xilogravura
extraída do livro de Hans Staden, um alemão que relatou minuciosamente sua
experiência de ser cevado por índios brasileiros a fim de virar um banquete; o formato e o número
de páginas também correspondem aos de um cordel. A única diferença é que foi
escrito em prosa, conforme já se fez na Europa quando o cordel estava em fase
embrionária, quando a designação “hojas” ou “pliegos” de cordel designavam mais o suporte
que o gênero. Vemos, nesse seu opúsculo tão bem escrito, outra de suas grandes
paixões: os índios. Diz-nos ele que esta obra é o resultado de suas muitas
andanças e acampamentos pelos sertões do Vale do Assu. Tais incursões e
dormidas à luz do luar, em situações similares às vividas pelos índios que ali
habitaram, atiçaram sua curiosidade em pesquisar sobre a cosmologia indígena.
Eram 12 horas e a palestra não
havia terminado. À semelhança do Antônio Castelo, não cumpri à palavra dada à minha
Rita. Àquela altura já deveria estar nalgum restaurante chic, num dos mais
caros de Pipa – ela me dissera que pretendia ter um momento extravagância
naquela viagem. Lá se fora, naquele final de semana, todo lucro da primeira
edição de meu livro.
Marinho prosseguia, aberto às
perguntas e sempre dizendo mais do que consta no livro. Cada frase dele parece
um hiperlink que se abre sem que a gente clique. Imaginei minha esposa à porta
do Oásis. De vez em quando punha a cabeça fora para ver se eu estava de volta,
à semelhança de Rita no alto do morro. Estaria eu bem, devia estar a
perguntar-se.
Dois dias antes de nossa viagem
ela teve um pesadelo. Sonhara com bandidos que sequestravam pessoas para
arrancar-lhes os órgãos. Amanhecera o dia perguntando-me: “Vem cá, onde você
conheceu esse italiano? Já esteve com ele alguma vez? Quem foi que o apresentou?”
Falei-lhe do contato inicial
feito via Dr. Epitácio, do testemunho dado por Martha Maueny do Sebo Letra
n’Ativa, dos nossos contatos virtuais e perguntei-lhe o porquê de tão súbito
interesse. Contou-me o pesadelo. Será que não estaríamos caindo numa cilada,
perguntava-me. Afastei seus temores e rimos muito.
Às doze e uns quebrados saímos
eu, Jack e Marinho na direção da pousada. Conversa interminável, de interesse
mútuo.
Deixamos Jack em um supermercado.
Surpreso, deparei-me com a casa da mãe de Marinho, vizinha à pousada. O bom filho à casa retornou e disse-me que ali ficaria. Comunicou-me que logo iria dar uns mergulhos.
Fiquei a perguntar-me se seria na
praia ou nalgum livro.
Será que peguei alguma infecção hospipalar? Paro por aqui. Vou ao sanitário.
Santa Cruz, 11.12.2019
Capa do livro de Francisco Marinho
Simony Nôga, presenteando Marinho com meu livro
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