sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

ENCONTROS, REENCONTROS E DESARRANJOS NA PRAIA DE PIPA (autor: Gilberto Cardoso dos Santos)

Na sequência: Josiene Santos, Francisco Marinho, Jack e Gilberto Cardoso

Sábado pela manhã em Pipa, achava-me num oásis, na Pousada Oásis. Mas não estava bem.

Jack d’Emilia entrou em contato convidando-me a ir para uma palestra que seria ministrada por Francisco Fernandes Marinho. Disse-me que seria numa escola, perto da pousada. Disse que valeria a pena, mas deixou-me à vontade, disse: “Senão, aproveite e vá tomar um banho de mar na Baía dos Golfinhos.”

Disse-lhe que não amanhecera nada bem. Na noite anterior, durante o FLIPAUT, tinha consumido uma fatia de torta com prazo de validade aparentemente prolongado e, por consequência, achava-me no vaso, em pose semelhante à da escultura de Rodin, só que com um celular na mão.

Maldita torta, pensava eu. Estragou minha manhã potencialmente paradisíaca. Dizem que o barato sai caro, mas em Pipa há também o caro que não sai barato. Durante todo o evento estivera demasiado exposta. Fumantes a rodeavam. Conversavam, negociavam... e ela ao centro. Convidativa? Nem tanto. Depois pensei nas micropartículas de saliva que devem ter caído sobre ela. Achei que fizesse parte do mostruário, mas era a dita cuja. Eram quase dez horas da noite quando a comi. Não havia jantado por causa do café reforçado que tomara na pensão pela manhã.

Jack, ao celular, lembrou-me que na escola onde ocorreria a palestra havia sanitários.

Um pouco antes das dez, rumamos a pé para o evento. Jack, italiano radicado no Brasil há décadas, não sabia de minha proximidade com Francisco Marinho, tampouco do interesse que tinha em revê-lo após tantos anos. Seguimos, enquanto ele falava da importância daquele evento. Tratava-se do pré-lançamento de um livro intitulado ANTÔNIO JOSÉ MARINHO, O DEFENSOR DA NATUREZA NA PRAIA DA PIPA. O palestrante, dizia-me ele, era uma pessoa de grande importância intelectual, cultíssimo – um dos pouquíssimos brasileiros a ter acesso aos documentos secretos do Vaticano.
Quando chegamos à escola, foi aquela festa de reencontro! O Marinho demorou alguns segundos até que caiu a ficha. Esperto que só ele, enquanto me mirava com afago perguntou-me como estava o Sertão. Disse-lhe que tinha vindo de Santa Cruz e ele disse: “Eu sei. E Santa Cruz não pertence ao sertão? Você é o Cardoso, o poeta.”

A palestra foi muito interessante. Causou-me espanto saber que o avô de Francisco Marinho tinha sido um dos fundadores daquela comunidade, daí o duplo interesse dele em resgatar essa história, tão familiar.

Enquanto o ouvia, ficava me perguntando qual a real importância daquilo tudo. Era importante, sem dúvida, mas para inteirar-me do passado eu sacrificava o meu presente, e que presente: perto dali, a Praia dos Golfinhos e a Praia do Amor. Minha esposa amanhecera gripada, com dor de cabeça. Tinha dito que eu podia ir à palestra. Se chegasse a hora do almoço e eu não aparecesse, ela sairia pra comer. Quando eu saísse do encontro procurasse um lugar pra almoçar. Disse-lhe eu que não se preocupasse, pois voltaria a tempo. Esforçava-me para controlar a atenção, mas principalmente o intestino. As contrações perturbavam a mente. Pesquisas modernas nos dizem que o intestino é nosso segundo cérebro. Pelo menos ele parece influenciar e muito o que se passa em nossa cabeça. Eu nem queria almoçar e ficava a pensar em coisas que desviavam a atenção. Marinho! Há décadas já era bem mais velho que eu. Como a personagem de Olhos nos olhos, de Chico Buarque, ele está remoçando. Será que já leu O estranho caso de Benjamin Button? O Fausto, de Goethe? De tão afeito ao giz, não se adaptou bem aos pincéis atômicos, disse-nos ao traçar uma árvore genealógica no quadro. Já teve diante de si tabletes cuneiformes, disse-nos. Será que foi nessa geração? O homem da Terra, um filmaço. Conta a historia de um professor que atravessa os milênios. Vou assistir de novo.

Estava ali, ao meu lado, o Jack, filho de Emília; o aventureiro que saiu da Itália ainda jovem, que havia se encantado com a informalidade e bom-humor do povo brasileiro. Notório o seu encanto pelo litoral brasileiro (primeiro morou em Ponta Negra, depois mudou para Pipa); também adora o Sertão. Frequentes são suas incursões pela caatinga; faz questão de ir só, acompanhado por um cão, pois teme que alguém entre em apuros por sua causa. Dessas experiências, extrai contos e crônicas.  Parece-me, a julgar pelas coisas que aqui relato, costumeiramente preocupado com o bem estar alheio. Interviu, logo no começo da palestra, para lembrar aos presentes que, caso precisassem, a escola dispunha de bebedouros e de sanitários. Percebi que me mirou de soslaio ao finalizar a frase.
Poucos compareceram ao evento. Dentre estes, a produtora cultural Josiene Santos.

À minha frente, o grande Francisco Marinho, tão querido e admirado em Santa Cruz (Péricles, quando prefeito, o convidou para ser secretário de educação, mas recusou devido viagens e pesquisas. Se for convidado novamente, topará.) e em Pipa. Aliás, é figura de destaque no meio acadêmico do RN. O homem tem uma casa cheia de livros. Só de autores potiguares ele tem uns 20 mil, devidamente catalogados. Tenho certeza que nem parou para ler o meu Um Maço de Cordéis - lições de gente e de bichos, pensei, livro que lhe foi presenteado por Simony Nôga. Mas não se espantem ainda, pois tem mais umas quarenta mil obras de autores diversos.

Uma das coisas que o impressionou em sua visita aos arquivos secretos do Vaticano foram livros que, de tão antigos, haviam se petrificado. Literalmente, pensei, haviam virado tijolos do saber. Livros impenetráveis como os textos de Hegel, que ele adora tanto. Lembrei-me da fatia de torta medieval e da ameaça aos meus caninos. O estômago quis ensaiar uma pequena revolução.

Logo cedo, havia contendido com a esposa por causa da provável causa da indigestão. Segundo ela, haviam sido as castanhas. Quem já viu se comer duma vez um pacote de castanhas? Não fora de uma vez, mas durante a viagem. Pouco mais de cem gramas. Nem percebera. Fiquei na dúvida, mas continuei incriminando a torta.

Poucos compareceram ao evento. Dentre estes, a produtora cultural Josiene Santos. O organismo febril deixou-me meio chato e delirante. Perguntei ao Marinho sobre os negros escravizados, responsáveis pelo progresso de Pipa. Fui mais  fundo na divagação e indaguei sobre os índios, decerto abundantes naquelas paragens paradisíacas. Ao falar em índios despertei a atenção do Jack. Concordamos, em voz alta, que a história contada é sempre a dos vencedores. Como se não bastasse tanta impertinência, perguntei sobre os mártires de Cunhaú e de Uruaçu. O pobre do Marinho discorreu em profundidade sobre o assunto e depois não sabia mais o caminho de volta. “Falávamos de quê mesmo?”, indagou.

Pus-me a pensar naquele homem tão culto, tão professoral e interessado por livros que me falava do passado de Pipa. Ele não vive: ele lê e escreve, pensei. Sacrifica-se prazerosa e masoquistamente pela leitura e pela escrita. Adora pesquisar, catalogar. Além do que já publicou, há muita coisa iniciada, mas não concluída. Pesquisas importantes. Projetos grandiosos. Energia não lhe falta, mas o número de horas diárias não colabora. Valeria a pena, perguntei-me e uma vozinha interior citou Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.”

O Jack parece não ficar muito atrás. Disse-me que lê e escreve todos os dias. Seu interesse pelos livros não deixa margem a dúvidas. Há anos organiza o FLIPAUT, criado como alternativa ao FLIPIPA. Este último faliu, enquanto o FLIPAUT está mais firme que nunca, em sua décima edição. Vários meses são dedicados por Jack à preparação desse evento que não tem fins lucrativos.

Voltando à palestra: Marinho contou a história de Antônio Castelo, um português que aportou em Pipa no passado distante e apaixonou-se por uma jovem extremamente linda, a Rita Gomes de Abreu; ela varria um terraço quando a viu pela primeira vez; de tal modo ele se encantou por ela que, de imediato, a pediu em casamento e ajustou o enlace para dali a seis meses! Voltou a Portugal e deixou Ritinha à espera, vítima da zombaria e indiferença de uns, mas cheia de esperança de que ele cumpriria a palavra. Os seis meses se arrastaram, e o noivo não voltou para cumprir a promessa. Pobre Rita! Se antes  a consideravam tola, muito mais agora. Marinho encontrou no livro um trecho bem romântico e o leu para a gente.

Disse-nos Marinho que, conforme colhera dos mais velhos, todos os dias Ritinha subia o Morro da Ponta da Praia da Pipa na esperança de ver alguma embarcação a cruzar o Atlântico, vindo em sua direção. Seis dias após a data combinada, o noivo chegou trazendo explicações convincentes para o atraso e pedindo mil desculpas. Ritinha não fazia ideia do quanto ele se esforçara para chegar a tempo. Casou e ali mesmo, ao pé do Morro, fixou residência com sua bela Rita. Pensei comigo: isso dá um bom cordel.

Por falar em cordel, descobri na palestra que o avô e o pai de Marinho também haviam escrito cordéis. Li alguns na boneca do livro;  minha surpresa só crescia. À noite, no evento do FLIPAUT, viria a descobrir que sua irmã escreve e publica cordéis (ao menos um tinha à venda)! Ele próprio, também, é poeta, além de prosador.

O Jack cumpriu uma promessa feita meses antes. Deu-me um livrinho de sua autoria que tem tudo que há num cordel, menos a métrica e a rima. Acima do título – ASTRONOMIA INDÍGENA, O Setestrelo – está escrito Literatura de Cordel. Definitivamente, ele é um fã do gênero. Na capa, temos uma xilogravura extraída do livro de Hans Staden, um alemão que relatou minuciosamente sua experiência de ser cevado por índios brasileiros a fim de virar um banquete; o formato e o número de páginas também correspondem aos de um cordel. A única diferença é que foi escrito em prosa, conforme já se fez na Europa quando o cordel estava em fase embrionária, quando a designação “hojas” ou “pliegos” de cordel designavam mais o suporte que o gênero. Vemos, nesse seu opúsculo tão bem escrito, outra de suas grandes paixões: os índios. Diz-nos ele que esta obra é o resultado de suas muitas andanças e acampamentos pelos sertões do Vale do Assu. Tais incursões e dormidas à luz do luar, em situações similares às vividas pelos índios que ali habitaram, atiçaram sua curiosidade em pesquisar sobre a cosmologia indígena.

Eram 12 horas e a palestra não havia terminado. À semelhança do Antônio Castelo, não cumpri à palavra dada à minha Rita. Àquela altura já deveria estar nalgum restaurante chic, num dos mais caros de Pipa – ela me dissera que pretendia ter um momento extravagância naquela viagem. Lá se fora, naquele final de semana, todo lucro da primeira edição de meu livro.

Marinho prosseguia, aberto às perguntas e sempre dizendo mais do que consta no livro. Cada frase dele parece um hiperlink que se abre sem que a gente clique. Imaginei minha esposa à porta do Oásis. De vez em quando punha a cabeça fora para ver se eu estava de volta, à semelhança de Rita no alto do morro. Estaria eu bem, devia estar a perguntar-se.

Dois dias antes de nossa viagem ela teve um pesadelo. Sonhara com bandidos que sequestravam pessoas para arrancar-lhes os órgãos. Amanhecera o dia perguntando-me: “Vem cá, onde você conheceu esse italiano? Já esteve com ele alguma vez? Quem foi que o apresentou?”

Falei-lhe do contato inicial feito via Dr. Epitácio, do testemunho dado por Martha Maueny do Sebo Letra n’Ativa, dos nossos contatos virtuais e perguntei-lhe o porquê de tão súbito interesse. Contou-me o pesadelo. Será que não estaríamos caindo numa cilada, perguntava-me. Afastei seus temores e rimos muito.

Às doze e uns quebrados saímos eu, Jack e Marinho na direção da pousada. Conversa interminável, de interesse mútuo.

Deixamos Jack em um supermercado. Surpreso, deparei-me com a casa da mãe de Marinho, vizinha à pousada. O bom filho à casa retornou e disse-me que ali ficaria. Comunicou-me que logo iria dar uns mergulhos.

Fiquei a perguntar-me se seria na praia ou nalgum livro.

Será que peguei alguma infecção hospipalar? Paro por aqui. Vou ao sanitário.

Santa Cruz, 11.12.2019


Capa do livro de Francisco Marinho

 Simony Nôga, presenteando Marinho com meu livro






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