sábado, 14 de dezembro de 2019

ENCONTRO, REENCONTRO E DESSARRANJOS NA PRAIA DE PIPA. (Gilberto Cardoso dos Santos)

Na sequência: Josiene Santos, Francisco Marinho, Jack e Gilberto Cardoso

ENCONTRO, REENCONTRO E DESSARRANJOS NA PRAIA DE PIPA.

Sábado pela manhã, acordei numa pousada de nome Oásis, em um lugar que, por si só, já é um oásis: a comunidade de Pipa!  Todavia, não estava bem.

Jack d’Emilia entrou em contato convidando-me a ir para uma palestra que seria ministrada por Francisco Fernandes Marinho. Disse-me que seria numa escola, perto dali. Valeria a pena, falou, mas deixou-me à vontade. Disse: “Senão, aproveite e vá tomar um banho de mar na Baía dos Golfinhos.”

Disse-lhe que não amanhecera nada bem. Achava-me no vaso, em pose semelhante à da escultura de Rodin, só que com um celular na mão. Teria sido a fatia de torta da noite anterior? Minha esposa achava que tinham sido as castanhas consumidas na viagem: cem gramas!

Jack lembrou-me que na escola onde ocorreria a palestra havia sanitários.

Um pouco antes das dez, rumamos a pé para o colégio. O italiano, radicado no Brasil há tanto tempo, não sabia muito sobre minha aproximação com Francisco Marinho em décadas passadas, tampouco do interesse que tinha em revê-lo após tantos anos. Seguimos, enquanto ele falava da importância daquele evento. Tratava-se do pré-lançamento de um livro intitulado ANTÔNIO JOSÉ MARINHO, O DEFENSOR DA NATUREZA NA PRAIA DA PIPA. O palestrante, dizia-me ele, era uma pessoa de grande importância intelectual, cultíssimo – um dos pouquíssimos brasileiros a ter acesso aos documentos secretos do Vaticano.

Quando chegamos à escola, foi aquela festa de reencontro! Marinho mirou-me com aquele sorriso que lhe é peculiar, fez todo afago e disse: “Você é o Cardoso, de Santa Cruz, o poeta.”

A palestra foi muito interessante. Causou-me espanto saber que o avô de Francisco Marinho tinha sido um dos fundadores daquela comunidade, daí o duplo interesse dele em resgatar essa história, tão familiar. Como a personagem de Olhos nos olhos, de Chico Buarque, ele parece estar remoçando. De tão afeito ao giz, não se adaptou bem aos pincéis atômicos, disse-nos ao traçar uma árvore genealógica no quadro.

Estava ali, ao meu lado, o Jack, filho de Emília; o aventureiro que saiu da Itália ainda jovem, que havia se encantado com a informalidade e bom-humor do povo brasileiro. Notório o seu encanto pelo litoral brasileiro (primeiro morou em Ponta Negra, depois mudou para Pipa); também adora o Sertão. Frequentes são suas incursões pela caatinga; faz questão de ir só, acompanhado por um cão, pois teme que alguém entre em apuros por sua causa. Dessas experiências, extrai contos e crônicas. Parece-me, a julgar pelas coisas que aqui relato, costumeiramente preocupado com o bem estar alheio. Interviu, logo no começo da palestra, para lembrar aos presentes que, caso precisassem, a escola dispunha de bebedouros e de sanitários. Percebi que me mirou de soslaio ao finalizar a frase.

Não foram muitos os que compareceram, mas tivemos uma miniplateia seleta, vivamente interessada. Dentre estes, a atenciosa produtora cultural Josiene Santos.

Foi muito bom ter à minha frente, o grande Francisco Marinho, tão querido e admirado em nossa cidade (em administração anterior, foi convidado para ser secretário de educação em Santa Cruz, mas declinou do convite, devido viagens e pesquisas). Queridíssimo  em Pipa! Aliás, é figura de grande destaque no meio acadêmico do RN. Tem uma casa cheia de livros. Só de autores potiguares ele tem uns 20 mil, devidamente catalogados, fora o meu Um Maço de Cordéis - lições de gente e de bichos, que lhe foi presenteado por Simony Nôga. Mas não se espantem ainda, pois tem mais umas quarenta mil obras de autores diversos!

Uma das coisas que o impressionou em sua visita aos arquivos secretos do Vaticano foram livros que, de tão antigos, haviam se petrificado. Literalmente, pensei, haviam virado tijolos do saber. Obras impenetráveis como os textos de Hegel, que ele adora tanto.

O organismo febril deixou-me meio afoito e delirante. Comentei sobre a falta de dados sobre a população negra escravizada, também responsável pelo desenvolvimento de Pipa Também comentamos sobre os índios, decerto abundantes naquelas paragens paradisíacas. Todavia, como também pensa o Jack, a história contada é sempre a dos vencedores. É uma pena vermos tão pouco a respeito disso. Marinho e Jack adorariam saber mais e mais. Divaguei um pouco ao perguntar sobre os mártires de Cunhaú e de Uruaçu. O sábio Marinho discorreu em profundidade sobre o assunto e teve certa dificuldade em retornar ao tema. “Falávamos de quê mesmo?”, indagou.

Pus-me a pensar naquele homem tão culto, tão professoral e interessado por livros que me falava do passado de Pipa. Ele não vive: ele lê e escreve, pensei. Sacrifica-se prazerosamente pela leitura e pela escrita. Vive altruisticamente. Adora pesquisar, catalogar. Além do que já publicou, há muita coisa iniciada, mas não concluída. Pesquisas importantes. Projetos grandiosos. Energia não lhe falta, mas o número de horas diárias não colabora. Valeria a pena, perguntei-me e uma vozinha interior citou Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.”

O Jack parece não ficar muito atrás. Disse-me que lê e escreve todos os dias. Seu interesse pelos livros não deixa margem a dúvidas. Há anos organiza o FLIPAUT, criado como alternativa ao FLIPIPA. Este último faliu, enquanto o FLIPAUT está mais firme que nunca, em sua décima edição. Vários meses são dedicados por Jack à preparação desse evento que não tem fins lucrativos. Evento magnifico que jamais deverá morrer.

Voltando à palestra: Marinho contou a história de Antônio Castelo, um português que aportou em Pipa no passado distante e apaixonou-se por uma jovem extremamente linda, a Rita Gomes de Abreu; ela varria um terraço quando a viu pela primeira vez; de tal modo ele se encantou por ela que, de imediato, a pediu em casamento e ajustou o enlace para dali a seis meses! Voltou a Portugal e deixou Ritinha à espera, vítima da zombaria e indiferença de uns, mas cheia de esperança de que ele cumpriria a palavra. Os seis meses se arrastaram, e o noivo não voltou para cumprir a promessa. Pobre Rita! Se antes diziam que era tola, muito mais agora. Marinho encontrou no livro um trecho bem romântico e o leu para a gente.

Disse-nos que, conforme colhera dos mais velhos, todos os dias Ritinha subia o Morro da Ponta da Praia da Pipa na esperança de ver alguma embarcação a cruzar o Atlântico, vindo em sua direção. Seis dias após a data combinada, o noivo chegou trazendo explicações convincentes para o atraso e pedindo mil desculpas. Ritinha não fazia ideia do quanto ele se esforçara para chegar a tempo. Casou e ali mesmo, ao pé do Morro, fixou residência com sua bela Rita. Pensei comigo: isso dá um bom cordel.

Por falar em cordel, descobri na palestra que o avô e o pai de Marinho também haviam escrito cordéis. Li alguns na boneca do livro;  minha surpresa só crescia. À noite, no evento do FLIPAUT, viria a descobrir que sua irmã escreve e publica cordéis (ao menos um tinha à venda)! Ele próprio, também, é poeta, além de prosador.

O Jack cumpriu uma promessa feita meses antes. Deu-me um livrinho de sua autoria que tem tudo que há num cordel, menos a métrica e a rima. Acima do título – ASTRONOMIA INDÍGENA, O Setestrelo – está escrito Literatura de Cordel. Definitivamente, ele é um fã do gênero. Na capa, temos uma xilogravura extraída do livro de Hans Staden, um alemão que relatou minuciosamente sua experiência de ser quase comido por índios brasileiros; o formato e o número de páginas também correspondem aos de um cordel. A única diferença é que foi escrito em prosa, conforme já se fez na Europa quando o cordel estava em fase embrionária, quando a designação “hojas” ou “pliegos” de cordel designavam mais o suporte que o gênero. Vemos, nesse seu opúsculo tão bem escrito, outra de suas grandes paixões: os índios. Diz-nos ele que esta obra é o resultado de suas muitas andanças e acampamentos pelos sertões do Vale do Assu. Tais incursões e dormidas à luz do luar, em situações similares às vividas pelos índios que ali habitaram, atiçaram sua curiosidade em pesquisar sobre a cosmologia indígena.

Eram 12 horas e a palestra não havia terminado, pois ficávamos instigando o orador. À semelhança do Antônio Castelo, não cumpri à palavra dada à minha Rita. Àquela altura já deveria estar nalgum restaurante chic, num dos mais caros de Pipa – ela me dissera que pretendia ter um momento extravagância naquela viagem.

Marinho prosseguia, aberto às intervenções. Cada frase parecia um hiperlink tentador.

Às doze e uns quebrados, saímos eu e os dois pesquisadores no rumo da pousada. Conversa interminável, de interesse mútuo. Deixamos Jack em um supermercado. Surpreso, deparei-me com a casa da mãe de Marinho, vizinha à pousada onde eu estava. Ele disse-me que ali ficaria. Comunicou-me que logo iria dar uns mergulhos.

Fiquei a perguntar-me se seria na praia ou nalgum livro.

Foi muito bom conhecer de perto o Jack e rever o amigo Marinho. São duas figuras dignas de todo respeito e admiração.


Santa Cruz, 11.12.2019


Capa do livro de Francisco Marinho

 Simony Nôga, presenteando Marinho com meu livro





Adquira o livro Um Maço de Cordéis - Lições de gente e de Bichos ((Fone/Whatsapp 84 99901-7248 ou gcarsantos@gmail.com)


Nenhum comentário:

Postar um comentário